Vera Pessoa
PSICÓLOGA



TESE DE DOUTORADO
Indice



6
DISCUSSÃO


6.1 Meninos indicados como irrequietos: percepção das professoras

Ao contrastar os meninos indicados como irrequietos pelas professoras com a classificação dos mesmos na norma CARELLI, nota-se que dos 17 meninos percebidos como irrequietos, onze deles classificaram-se acima do terceiro quartil (Q3), correspondendo a uma porcentagem de 64,70 de concordância entre os indicadores. Este resultado mostra que a percepção da professora em relação ao menino estudado é um dado a ser considerado pelos profissionais das áreas de saúde e educação. A professora passa um período maior em contato com a criança, comparativamente aos pais e profissionais da área de saúde, em situações variadas, e pode compará-la com um padrão estabelecido, proveniente de muitas observações com diferentes crianças. Estas são confrontadas com tarefas diárias apropriadas à sua idade, a experiências prévias, e devem se ajustar a um sistema social complexo, posicionando-se diante de muitos problemas de adaptação que os professores estão acostumados a observar. Apesar das limitações, os mesmos são capazes de fazer observações astutas sobre o comportamento das crianças e de ver a habilidade das mesmas para lidar com seus pares e com as exigências do currículo (CONNERS, 1969; WERRY e QUAY, 1971; TOBIESSEN et al., 1971; BELL et al., 1972; CONNERS, 1973; WERRY et al., 1975; KOLVIN et al., 1977; SPRING et al., 1977; GOYETTE et al., 1978; SANDBERG et al., 1980; ROWE e ROWE, 1992a , 1992b).

Reportando, agora, aos resultados obtidos neste estudo, notam-se porcentagens diferentes na caracterização da qualidade da verbalização e do movimento corporal do menino indicado como irrequieto (verbalização: 47,60% e movimento corporal 52,40%). Os dados sugerem que a conspicuidade do movimento corporal está diretamente relacionada à qualidade; por meio desta, a professora mostrou perceber diferentemente a verbalização do movimento corporal, do menino indicado. Provavelmente, a qualidade seja a definidora conceitual adequada, mais ou tanto quanto a quantidade, para a distinção entre o menino rotulado como hiperativo e o normal, na sala de aula; sendo este, provavelmente, o motivo pelo encontro de resultados divergentes entre pesquisas relativas ao fenômeno estudado, neste contexto social. Contrastando esta assertiva com resultados da literatura, sobre a hiperatividade, nota-se que as mesmas estão calcadas sobre conceituações quantitativas (KOLVIN et al., 1977; SANDBERG et al., 1980).

Esta hipótese pode ser reafirmada quando os dados da Tabela 16 são observados. Nesta, as professoras apontaram como bastante o movimento corporal do menino indicado como irrequieto (52,20%). O movimento corporal, sendo percebido como bastante, provavelmente, é conspícuo não somente pela sua quantidade, como também, ou mais, pela sua qualidade. Quando este movimento é desta forma percebido, talvez seja porque este não é repetitivo e nem contínuo, em uma mesma parte do corpo. Se o mesmo fosse repetitivo e contínuo, em uma mesma parte do corpo, poderia passar desapercebido, uma vez que sua repetição contínua, provavelmente, levaria à habituação da percepção deste movimento corporal. Na presente pesquisa, em uma mesma parte do corpo ou em várias, verificou-se que os meninos considerados como irrequietos sobressaíram-se, comparativamente aos normais, pela alternância e pelo ritmo de movimentos corporais, medidos pelos índices qualitativos de Alternância e Ritmo, respectivamente.

As professoras mostraram perceber mais os movimentos de braços e mãos, comparativamente às demais partes do corpo (44,28%); dados igualmente observados por SOUZA (1985) e reafirmados na presente pesquisa. Secundariamente, as professoras perceberam mais os movimentos de pernas e pés (57,15%), quando compararam o menino indicado com outro não considerado irrequieto. Possivelmente, ao referir-se ao menino indicado em relação a ele próprio, a professora apontou os braços e mãos como mais percebidos, devido ao movimento alternado e ao rítmico, em especial durante a realização de uma tarefa. Entretanto, quando a professora refere-se ao mesmo em relação ao outro, uma parte diferente do corpo evidenciou-se, ou seja, pernas e pés. Possivelmente, esta ênfase diferente de braços e mãos/pernas e pés deve-se ao conceito de que, numa sala de aula, as crianças têm que permanecer quietas e sentadas para a execução da tarefa. Refletindo aí uma ideologia educacional que, por sua vez, espelha-se nos valores sociais (SHAYWITZ e SHAYWIST, 1984; MOYSÉS e SUCUPIRA, 1988; COWART, 1988; LONEY e MILICH, 1982; MOYSÉS e COLLARES, 1992; CORRÊA, 1992; ESTEBAN, 1992; GARCIA, 1992). Esta proposição é confirmada por SOUZA (1985), ao ressaltar que as ocorrências maiores de movimentação corporal apresentam-se, seqüencialmente, nas partes do corpo braços e mãos, olhos, e pernas e pés.

Conclui-se, então, que a indicação e a percepção dos movimentos do menino considerado como irrequieto, pela professora, concordam com a norma CARELLI, quando aquela mostrou uma "memória perceptiva gestáltica". Observou-se que a idade, escolaridade, tempo de magistério, em especial, o tempo de trabalho das professoras com alunos de segunda série do primeiro grau e número de alunos na sala de aula, não interferiram nas indicações dos meninos irrequietos pelas mesmas.

Desta forma, considerando a professora como representante de um contexto social, nela encontrar-se-ia imbuído os valores e conceitos do mesmo; conseqüentemente, a projeção da professora, ao indicar o menino considerado como irrequieto, deveria vir carregada destes valores. No entanto, neste sentido, notou-se que do total de 147 meninos, a porcentagem de indicação alinhada à norma CARELLI foi de 7,48; dos 147, 17 deles foram indicados e, destes, onze foram classificados acima do terceiro quartil. Conclui-se, pois, que o método de investigação utilizado neste estudo favoreceu a indicação da professora quando os 17 meninos foram contrastados aos 32 não indicados (normais), na norma CARELLI.

6.2 Avaliação observacional da movimentação corporal de meninos não indicados como irrequietos (normais), para construção de um parâmetro: a norma CARELLI

Segundo os objetivos e metodologia estabelecidos na presente pesquisa, não se encontrou na literatura científica uma escala que correspondesse às necessidades da mesma. No entanto, duas das mais utilizadas, a de RUTTER (1967) e a CATRS-10, de CONNERS (1973), serão contrastadas para discussão da norma CARELLI.

A escala de RUTTER, embora seja de fácil aplicação, apresenta limitações para seu uso clínico, necessitando ser completada por informações adicionais do professor. Além disso, devido a sua pontuação, apresenta falha na discriminação da criança com um único sintoma, como exemplo: enurese noturna (RUTTER, 1967). Por outro lado, a mesma é formada por itens que podem ser agrupados desde a categoria "neurótica" à "anti-social", não sendo, portanto, específica ao rotulado menino hiperativo, o que deve comprometer o diagnóstico e conseqüentemente o tratamento deste. Destaca-se, ainda, a forma como o instrumento foi criado: durante seu desenvolvimento, professores foram entrevistados e, posteriormente, os mesmos classificaram os comportamentos considerados relevantes para cada item na escala. E, ao se verificar a validade do instrumento, decidiu-se usar os comportamentos de crianças de uma clínica psiquiátrica como parâmetro de anormalidade.

Constrastando a escala anterior à norma CARELLI, verifica-se que esta foi construída especificamente para a pesquisa, tendo como objetivo precípuo detectar a amplitude, em quartis (Q1, Q2 e Q3), do movimento corporal do menino indicado como irrequieto. Os movimentos de partes do corpo, ou seja, de olhos, braços e mãos, pernas e pés, foram descritos durante a realização de uma Tarefa Não-Verbal, em sala de aula. Para a construção deste instrumento, a participação da professora foi útil no sentido de que a mesma indicou os meninos percebidos como irrequietos. Assim, 32 meninos normais, não indicados, foram sorteados dando origem à norma CARELLI. Desta forma, pode-se notar que esta foi elaborada sem prévio julgamento, ou de avaliações comportamentais e/ou de pressupostos teóricos sobre a hiperatividade, seja sob o ponto de vista do professor, ou dos pais, ou mesmo do pesquisador. A norma CARELLI baseou-se apenas nos dados de observação e descrição fina do movimento de partes do corpo, analisados por meio das dimensões do movimento de 32 meninos não indicados como irrequietos (normais).

Retomando a literatura, observa-se que CONNERS (1973) inspirou-se nas suas escalas: "Teacher Rating Scale" (TRS) e "Parent Rating Scale" (PRS) para a construção da CATRS-10. Pesquisadores, entre eles um brasileiro, BRITO (1987), têm afirmado a utilidade e validade desta para o diagnóstico da hiperatividade. No entanto, ULLMANN et al. (1985), estudando 616 crianças de segundo e terceiro ano primário, por meio da escala abreviada de CONNERS (CATRS-10), sugeriram que esta "seja abandonada" por não ter se mostrado eficiente na discriminação da criança com déficit de atenção, com ou sem hiperatividade, além de outros problemas encontrados. ROWE e ROWE (1992a) prosseguem afirmando que a grande ênfase entre os problemas de atenção, de aprendizagem "e de hiperatividade" (este último foi acrescido por este pesquisador), está na falta de sensibilidade e especificidade dos instrumentos psicométricos e escalas de avaliação, sugerindo que o critério de validade para determinar a existência de qualquer distúrbio na infância é, no mínimo, duvidoso.

Relativamente, à norma CARELLI, mostrou-se significativamente eficiente ao separar o grupo hiperativo do controle, cujo resultado evidenciou-se quando os perfis médios da movimentação corporal dos grupos foram estudados, em cada um dos índices de mensuração, pela análise de variância multivariada (MANOVA), na "Avaliação observacional da movimentação corporal de meninos hiperativos e grupo controle, na presença e ausência de música rock, na sala de aula" e, posteriormente, quando analisaram-se os perfis médios dos mesmos nas situações: norma e Antes da Música, cujos resultados serão contrastados na discussão geral.

6.3 Avaliação observacional da movimentação corporal dos meninos indicados como irrequietos, e encaminhados a diagnóstico diferencial de hiperatividade, para formação do grupo experimental

Na discussão anterior, relativa à norma CARELLI, foi ressaltado que este instrumento mostrou-se sensível ao discriminar o grupo hiperativo do controle, principalmente quando o mesmo foi contrastado às escalas de RUTTER (1967) e de CONNERS (1973).

Neste estudo, a norma CARELLI será abordada quanto a sua eficiência em formar o grupo rotulado como hiperativo. Este mostrou-se significativamente diferente do grupo controle, em relação a todos os índices de mensuração da movimentação adotados nesta pesquisa.

Por meio dos resultados dos 17 meninos indicados, ao analisar o rol dos escores brutos em cada um dos índices, nota-se que os escores maiores foram sempre atribuídos aos mesmos onze meninos indicados (Tabelas 21, 22 e 23). Esses valores variaram de 280 a 509 no índice Movimento, de 190 a 325 no índice Alternância e de 1,5 a 3,2 no índice Ritmo. Fica evidente que a dimensão do movimento corporal dos meninos indicados como irrequietos apresentou-se tanto quantitativa quanto qualitativa nestes resultados.

Dos 17 meninos indicados, onze deles (64,70%) classificaram-se em todos os índices com Notas K maiores, comparativamente aos demais meninos. Em seguida, no cálculo do somatório das mesmas, estes onze meninos classificaram-se acima do terceiro quartil (Q3), na NOTA K, sendo que, desta forma, dez foram classificados com a rotulação de hiperatividade pelos três indicadores, ou seja, pela indicação da professora, pelo diagnóstico do neuropediatra e pela norma CARELLI.

McGEE e SHARE (citados por ROWE e ROWE, 1992a) relatam que 80% das suas amostras com crianças de 9 anos de idade, identificadas com problemas de atenção, com hiperatividade, de acordo com a classificação dada pelo DSM-III, têm problemas de aprendizagem e de leitura. No entanto, KINSBOURNE (citado por ROWE e ROWE, 1992a) questiona a classificação da hiperatividade e do problema da atenção, afirmando que ambos são dependentes da "tarefa" e do "contexto" em que são investigados. McGEE e SHARE (citados por ROWE e ROWE, 1992a) concluem que os "comportamentos classificados como ADDH (DSM-III, 1980) podem ser considerados como um problema de conduta em sala de aula, porque as crianças conceituadas com dificuldade de aprendizagem são excluídas das atividades normais em sala de aula".

ROWE e ROWE (1992a) afirmam que as hipóteses simplificadas sobre o fenômeno, em questão, refletem conclusões anteriormente revistas pelas pesquisas. Estas têm mostrado problemas metodológicos e de análise dos dados, cujas conclusões conduzem à sugestão do desenvolvimento de pesquisas empíricas de campo. Estes pesquisadores questionam, ainda, que a falta de diferenciação clara entre: a hiperatividade, a atenção e/ou a aprendizagem seja, talvez, não somente pela ausência de validade das "categorias" diagnósticas, mas sim de uma "imposição constrangedora de interpretação dos dados relatados pelos estudos" (p.350).

A estas considerações, contraste-se, agora, a escala CATRS- 10 de CONNERS (1973). A mesma é formada pelas "categorias diagnósticas": "irrequieto e demasiadamente ativo; nervoso, impulsivo; incomoda outras crianças; fracassa em terminar o que começa, atenção curta, porém apreensão rápida; agitação constante; desatenção, distrái-se facilmente; os pedidos devem ser atendidos imediatamente; frustra-se facilmente; chora com freqüência e facilmente; o humor muda rapidamente e drasticamente; e explosão de temperamento, comportamento explosivo e imprevisível".

SANDOVAL (1977 e 1981) critica as escalas que empregam exclusivamente itens com palavras negativas suscetíveis de avaliações preconceituosas do avaliador, podendo conduzir a uma conclusão inadequada da criança em questão. Em relação aos itens com palavras positivas, SANDOVAL (1981) afirma que estas levam os avaliadores aos extremos das categorias de cada item, aumentando a dispersão e a discriminação das medidas.

Ressalte-se que, na atual pesquisa, os meninos indicados como irrequietos e diagnosticados pelo neuropediatra como hiperativos tiveram um parâmetro para suas classificações, enquanto grupo experimental. Este parâmetro, a norma CARELLI, é um instrumento que se utilizou da descrição fina da movimentação corporal, e não de categorias conceituadas, durante uma Tarefa Não-Verbal, numa sala de aula.

Por meio desta descrição notou-se a quantidade de movimento corporal, a mudança de um movimento para outro diferente e o movimento-repouso das partes do corpo, do menino rotulado como hiperativo. Estes movimentos foram registrados durante uma PRÁXIS, num espaço de tempo, num contexto social.

Acrescente-se, a tudo quanto exposto, o que LABAN (1978) afirmou sobre o movimento corporal:

"Diz-nos a ciência que a mudança é um elemento essencial da existência. As estrelas que vagueiam pelo céu nascem e morrem. Crescem e desaparecem, colidem umas com as outras, ou ainda destróem-se pelo fogo. A mudança está em toda parte. Este incessante movimento ao largo de um espaço incomensurável e de um tempo indeterminável tem seu paralelo nos movimentos mais diminutos e de menor duração que ocorrem em nossa Terra. Até mesmo coisas inanimadas como cristais, rios, nuvens e ilhas crescem e desaparecem, aumentam e quebram, aparecem e desaparecem.

A mudança se transforma em movimento nos seres vivos, dotados de uma necessidade interna imperiosa de empregar o tempo e as alterações que ocorrem no tempo para seus propósitos pessoais. Desenvolvem-se em seres caracterizados por traços individuais sejam eles plantas, animais ou homens. Levado por suas necessidades espirituais e materiais, o homem cultiva relacionamentos pessoais com seus semelhantes. Em todas essas necessidades, o movimento tem o papel central. Vemos os movimentos dos animais quando estão construindo suas moradias, arrumando comida ou enxotando intrusos. Vemos danças religiosas nas quais os seres humanos oram para seus deuses. Ouvimos também os movimentos de suas línguas, gargantas e peitos ao produzirem sons, nas palavras faladas e nos salmos e hinos cantados.

Os movimentos internos do sentimento e do pensamento se refletem nos olhos dos homens, bem como na expressão de seus rostos e mãos. A arte do palco originou-se da mímica, que é a representação de movimentos internos por intermédio de mudanças externas visíveis. A mímica é o tronco da árvore que se ramificou na dança e no drama. A dança se acompanha de música, enquanto que o drama o é por palavras. A música e a fala são ambas produzidas por movimentos que se tornaram audíveis. O som musical suscita as emoções; as palavras faladas exprimem pensamentos. A qualidade musical das palavras, porém, também colore as palavras com emoção. Por exemplo, quando um namorado diz à sua namorada: "Olhe que campo!", esta tomará conhecimento, partindo da entonação expressa nas palavras, de uma emoção inteiramente diferente daquela que um camponês expressaria quando usasse exatamente as mesmas palavras: "Olhe que campo!", tendo em mente seu trabalho. Além disso, a fala é muito mais expressiva quando colorida por gesticulação mímica que a acompanha. Na realidade, porém, não há fala destituída de tensão corporal. Esta tensão é movimento em potencial, revelando mais aspectos das necessidades internas do indivíduo, às vezes, do que suas próprias palavras. O movimento permeia a mímica, a dança, a representação teatral e o canto. Trata-se da vida, tal como nós a conhecemos. Também se encontra presente na execução instrumental, na pintura de quadros, em toda atividade artística afinal. Em cada um destes casos, o movimento não só é um fato físico, como também é um fato de significação variada em suas sempre mutantes expressões" (p.144 a 146).


Destarte, parece inquestionável que o movimento corporal do menino hiperativo deve ser considerado "não só um fato físico" (...) mas, "um fato de significação variada em suas sempre mutantes expressões", no transcorrer de uma aula.